Tuesday 11 September 2012

VALOR (SET-2012): CRISE ECONÔMICA ATUAL E SEUS POSSÍVEIS I

Este é o primeiro de uma série de artigos sobre a crise econômica atual e seus prováveis desdobramentos no mercado internacional e no Brasil, feitos por renomados economistas a pedido do Valor. Fernando Cardim de CarvalhoAlexandre SchwartsmanMichael Pettis, Luiz Gonzaga Belluzzo,


VALOR (SET-2012): CRISE ECONÔMICA ATUAL E SEUS POSSÍVEIS II



Para além da temporada dos furacões
Por Fernando Cardim de Carvalho 11-09-2012
Poucos momentos da história do capitalismo no pós-Segunda Guerra foram tão marcados pelos riscos de uma catástrofe econômica internacional como o que se abre nas próximas semanas. O fim das férias de verão europeias marca o término da trégua criada pela letargia dos mercados de dívida soberana de países da eurozona durante o período que vai de julho ao final de setembro.
A relativa calmaria desses meses contrasta dramaticamente com a repetição de momentos de pânico vividos no primeiro semestre deste ano, mas se explica menos pela adoção de instrumentos reconhecidos como eficientes de administração da crise do euro, do que pelo apego de europeus a suas férias, mesmo em meio a turbulências profundas como a que assistimos. O fim das férias desperta as consciências amortecidas pelo sol e pelo calor e traz de volta as preocupações com as graves ameaças que pairam sobre a área euro, especialmente no que tange ao status da Grécia e à possibilidade de que Espanha e, possivelmente, Itália se vejam forçadas a finalmente pedir o socorro financeiro formal da chamada troica, constituída pela União Europeia (UE), pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Como nas séries policiais de televisão, em maio e junho deste ano, algumas medidas de suporte foram prometidas aos países mais ameaçados, gerando algum alívio. Mas isso durou pouco tempo. A chamada união bancária, que serviria mais imediatamente para ancorar sistemas bancários frágeis como o espanhol sem submeter o governo do país às mesmas extensas exigências impostas à Grécia, Portugal e Irlanda, foi uma das medidas recebidas com relativo entusiasmo pelos mercados financeiros, antes que ficassem claras as difíceis pré-condições para que essa união fosse criada, incluindo-se aí o espinhoso tema da redefinição das responsabilidades e da estrutura do BCE para administrar essa iniciativa.
Liderança da zona do euro não tem estofo para superar os paliativos e tomar uma medida política mais ousada
Na ausência de medidas concretas no período de férias, pequenas ondas, marolinhas mesmo, foram sendo criadas, ora por alguma declaração do presidente do BCE, Mario Draghi, ora por críticas de autoridades monetárias alemãs, sempre hostis a qualquer medida que envolva o BCE alem do previsto nos seus estatutos de criação, ora por acenos de líderes políticos, ou rumores de acenos dos mesmos líderes, etc.
A partir deste mês, se aproxima a hora da verdade para a zona do euro. Por um lado, uma pressão cada vez mais forte vai se acumulando sobre a Grécia com o objetivo aparente, mas sempre negado, de forçá-la a pedir sua saída da área e, talvez, até mesmo da União Europeia. Os estatutos da UE e do euro não preveem a possibilidade de excluir membros. O caminho preferido dos membros mais fortes seria certamente receber um pedido de saída por parte da Grécia, e sabe-se lá quem mais, de modo a marcar de modo claro a responsabilidade por essa saída. Seria impossível entender de outra forma, não só a insistência da troica em exigências que obviamente não podem ser satisfeitas como também ao aumento periódico de demandas sobre o país.
Mas se a Grécia é o exemplo mais extremo, certamente não é o único. A população de Portugal, por exemplo, se prepara para conhecer nos próximos dias as medidas adicionais o governo local que terá de tomar para cumprir as metas impostas pela troica como preço para seu apoio, que, sem nenhuma surpresa, deixaram novamente de serem atingidas. Espanhóis vivem na expectativa de novos anúncios de cortes em serviços públicos, aumentos de impostos e, naturalmente, de novas quedas de seu Produto Interno Bruto (PIB). À sucessão infernal de contração da demanda pública e aprofundamento da recessão e do desemprego, que impedem o cumprimento de metas fiscais e levam a nova contração de demanda pública e assim por diante, a UE tem pouco a oferecer senão a perspectiva de novos sacrifícios e novas exigências sobre países que já se debatem em crises profundas.
Por quanto tempo ainda? Impossível saber, até pelas incertezas políticas envolvidas, mas a certeza vai crescendo que o tempo está acabando para que alguma solução possa ser encontrada. A própria percepção de que talvez o euro e até mesmo a própria UE não tenham saída pode levar a uma rápida deterioração da situação e a uma ruptura de grandes proporções.
A economia americana teve até agora um 2012 melhor que a UE, exibindo uma pequena redução na taxa de desemprego e uma expansão do produto positiva, ainda que pequena e claudicante. No entanto, espera-se a virada do ano com certo tremor, pela enorme (e quase inacreditável) ameaça do chamado penhasco fiscal ("fiscal cliff"). Em dezembro expiram as reduções de impostos decididas pelo ex-presidente Bush em favor de grupos de renda mais alta com as adições adotadas pelo presidente Obama, que beneficiaram setores da classe média. Enquanto o segundo quer eliminar os benefícios concedidos por Bush aos mais ricos, mantendo a redução para a classe média, os republicanos não aceitam a medida nesses termos. O impasse pode levar simplesmente ao termino do prazo da validade das medidas de redução dos impostos, aumentando de modo importante a tributação das pessoas físicas.
Por outro lado, também no início de 2012 deverão entrar em vigor cortes de despesas públicas em face da incapacidade da comissão bipartidária criada pelo atual presidente para sugerir medidas de reequilíbrio fiscal em chegar a propostas consensuais politicamente aceitáveis.
Finalmente, voltará a novela da ampliação do teto da dívida pública americana que, se impedida, implicará o estrangulamento dos gastos públicos no país. Se tudo der errado, como é perfeitamente possível, já que a mesma causa, o impasse político dos últimos anos gerado pela radicalização do partido Republicano na defesa de teses extremistas, responde pelas três ameaças, a frágil recuperação da economia americana enfrentará um obstáculo possivelmente fatal, e o "duplo mergulho", isto é, a queda em uma nova recessão, se tornará inevitável.
As consequências para a economia mundial de uma coincidência de tragédias econômicas, na UE e nos Estados Unidos, seriam provavelmente arrasadoras e teriam impactos duradouros.
Um colapso do euro é, porém, relativamente improvável. Embora seja dolorosamente claro para qualquer um que siga o desenrolar da crise que as lideranças políticas da região não tenham o estofo necessário para pensar e implementar alguma política mais ousada, seja na direção da federalização, seja na direção da definição de instrumentos de administração da crise mais eficazes, elas têm alguma prática no anúncio de paliativos que tem permitido o adiamento repetido de impasses fatais e não há razão para supor que o arsenal tenha se esgotado de forma permanente.
Já a probabilidade de queda no "penhasco fiscal" nos Estados Unidos é muito mais difícil de avaliar, dada a influência que elementos largamente irracionais tem tido no debate político daquele país. Parece se alimentar da desfuncionalização do Estado americano a principal ameaça de colapso da economia. A importância de posturas irracionais, de diagnósticos no mínimo malformulados, mas mais provavelmente simplesmente falsos, e a desintegração política que vem definindo aquele país aos olhos do mundo tornam quase impossível fazer qualquer previsão mais segura.
Otimistas dirão que alguma coisa será feita, nem que seja no último minuto. Se esta é a esperança, porém, as chances de sucesso são pequenas, porque a economia, e mais especialmente os mercados financeiros não esperam por "últimos minutos", são as expectativas desses últimos momentos que contam, e elas são formadas, e se tornam decisivas, muito antes.
De qualquer forma, a existência de ameaças excepcionais não deve desviar a atenção dos analistas de que evitar o desastre não significa que a conjuntura internacional vá passar por alguma melhora significativa, mas, sim, apenas que uma ruptura explosiva talvez possa ser evitada. Em caso positivo, as economias, tanto da UE quanto dos Estados Unidos, devem seguir sua trajetória de semiestagnação enraizada na crise financeira de 2008.
A depressão de 1930 só foi resolvida por um grande choque exógeno de demanda, a Segunda Guerra Mundial
Devem restar poucas dúvidas, em 2012, que a economia mundial se debate numa depressão. Em profundidade, extensão e duração, a crise iniciada no setor financeiro americano em 2007, que se espraiou pelo mundo em 2008, especialmente após a quebra do Lehman Brothers, só se compara à da década de 1930. Como nos anos 30, uma crise financeira de graves proporções parece desarmar os mecanismos espontâneos com que uma economia empresarial conta para se recuperar de recessões, no que se chama usualmente de "crises cíclicas". Uma depressão é caracterizada exatamente pela paralisia desses mecanismos e pela perpetuação de uma situação de semiestagnação.
O crescimento não é impossível, mas é incerto e frágil, sempre ameaçado por bombas-relógio plantadas na economia. É conhecido como a preocupação do presidente americano Roosevelt com déficits públicos o levou a superestimar a extensão em que a economia americana tinha se recuperado da queda de 1931 a 1933, e a adotar políticas de austeridade fiscal que jogaram o país em nova crise, da qual só saiu com o início da Segunda Guerra. O Japão, nos anos 1990 e 2000, repetiu o mesmo erro, mais de uma vez.
Mas não são apenas os impactos sobre finanças públicas que importam. A destruição de riqueza financeira de famílias, firmas, bancos, e até mesmo governos, passa a inibir duravelmente seus gastos, impedindo qualquer recuperação significativa de demanda agregada.
A única grande esperança que parece restar é a demanda externa, por mais que pareça (seja) absurdo imaginar que todos os países possam ter exportações líquidas positivas.
Finalmente, o aumento de alavancagem a que todos, famílias, firmas, bancos e governos, recorreram no tempo das vacas gordas finalmente apresenta sua conta. Os que sobrevivem, levam muito tempo para recuperar qualquer forma de vida normal.
Nesse contexto, tornam-se visíveis e urgentes desequilíbrios entre setores da economia, regiões, países mesmo, como no caso da UE, que permaneciam ocultos. À periferia da zona euro, por exemplo, cuja prosperidade se assentava no endividamento externo, agora sem financiadores a quem recorrer, só resta o caminho eufemisticamente chamado de "desvalorização doméstica". Impedidos de desvalorizar a moeda nacional, que já não existe, só lhes resta a saída de reduzir seus custos de forma a superar o enorme gap de competitividade que sofrem.
Na falta de qualificação de sua mão-de-obra, o que resta a gregos, portugueses, e mesmo, ainda que em grau um pouco menor, espanhóis, italianos e outros periféricos para reduzir seu custo de produção? O rebaixamento de salários até o ponto em que os produtos produzidos nesses países possa se tornar competitivo com o que é produzido nos países líderes.
Países que têm sua própria moeda usufruem, nesse processo, de vantagens, especialmente com a possibilidade de desvalorização cambial, mas em um mundo em prolongada e profunda contração, o comércio exterior não é mais que uma dança de cadeiras em que, sempre, alguém tem de sair perdendo.
Em suma, não há razão para supor que qualquer forma de normalidade venha a ser recuperada na economia mundial em menos do que quatro ou cinco anos, provavelmente ainda mais. Não se pode esquecer que a outra depressão só foi resolvida por um grande choque exógeno de demanda, o início da Segunda Guerra. Mesmo o melhor cenário, aquele em que autoridades europeias subitamente iluminadas consigam construir modos de administração da crise do euro de modo mais construtivo e em que autoridades norte-americanas milagrosamente iluminadas consigam romper o impasse que mantem paralisado o governo do país nos últimos anos, permanece muito ruim, o de atividade econômica em expansão lenta e incerta, sujeita a interrupções constantes, sempre ameaçada por novas crises.
Em um cenário assim, é improvável que a China possa repetir o papel que teve na primeira fase da crise, de locomotiva, pelo menos para alguns países, inclusive o Brasil. Forçada a relativizar a ênfase em mercados externos que se mostram extremamente claudicantes, a China parece voltar-se para seu mercado interno como motor de crescimento, mas não é pacífico que essa estratégia possa sustentar as taxas de crescimento que o país precisa para manter sua estabilidade política e social.
Nesse quadro, as perspectivas para o Brasil no futuro próximo não podem deixar de ser preocupantes. A ênfase no mercado doméstico é destino, mais do que escolha. Não se pode descurar das exportações, até mesmo para poder pagar pelas importações necessárias sem aumento excessivo do nosso passivo externo que possa, no futuro, por em risco nossa segurança, mas a dependência das exportações de matérias primas não nos augura um futuro próspero e a sobrevalorização do real nos impede de brigar de forma efetiva por espaço na arena internacional.
Por outro lado, voltar-se para o mercado interno implica dinamizar investimentos e repensar a ênfase dada pelo consumo (especialmente aquele financiado por endividamento) nos últimos anos. Esse gênero de estratégia não acelera nossa acumulação de capital, não aumenta nossa produtividade e competitividade, não estimula de forma eficaz o tipo de investimento que o país precisa nesta hora e fragiliza a economia. O consumo deve crescer, mas induzido pela expansão de investimentos e não pelo endividamento. O anúncio recente de uma estratégia para estimular investimentos em infraestrutura, nesse sentido, é um bom augúrio, esperemos que represente uma nova compreensão do que o país necessita e não se esgote nessa iniciativa.
Em outra série como esta do Valor, eu enfatizei minha preocupação com o futuro que minha neta Carolina viria a ter de enfrentar. Essas preocupações, se mudaram desde então, se tornaram mais aflitivas (e agora não só com o futuro de Carolina, mas também de Daniel, meu neto que está para chegar).
O Brasil tem o privilégio de contar com um mercado interno promissor. Resta saber se teremos a perícia necessária para concretizar essa promessa.
Fernando Cardim de Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).



Memórias de um economista centenário
Autor(es): Por Alexandre Schwartsman, Valor Econômico - 12/09/2012
Excerto das memórias do economista Alexandre Schwartsman, postadas no seu centésimo aniversário:
"Mas o principal erro, dentre tantos que cometi, e que são inerentes à profissão do economista, talvez tenha sido não levar a sério algumas de minhas próprias conclusões e, desta forma, não antever os eventos de maior magnitude observados até agora no século XXI, que vi nascer e no qual vivi a maior parte da minha longa existência.
Eu já tinha acompanhado o que ocorrera com a Argentina, país que - assim como a periferia europeia - havia se colocado numa armadilha cambial. Enquanto os capitais fluíam abundantemente tudo corria a favor do país. Havia um desequilíbrio externo, mas o financiamento barato não criava incentivos para sua correção; pelo contrário, a percepção que a poupança externa estaria sempre disponível para países que se engajassem seriamente nas reformas e no controle fiscal gerou despreocupação com respeito ao balanço de pagamentos.
Persistência do crescimento baixo ou negativo abre espaço para a polarização política e para o populismo
No entanto, quando os capitais secaram, originalmente por fatores que pouco (ou nada) tinham a ver com a Argentina, e o país se viu obrigado a fazer um forte ajuste de balanço de pagamentos, o pesadelo do padrão-ouro retornou. Incapaz de desvalorizar sua moeda, tentou promover a depreciação interna, isto é, reduzir preços e salários domésticos para recuperar a competividade perdida.
Como resultado, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), que atingira níveis asiáticos nos anos anteriores, foi negativo em 1998, 1999, 2000 e 2001, testando os limites políticos e econômicos da estratégia. A arrecadação caiu e o país passou a enfrentar problemas fiscais. Ao mesmo tempo, aumentou a percepção que a Argentina não conseguiria manter o câmbio fixo, gerando um sério problema: com praticamente toda a dívida pública e privada denominada em dólares, era claro que o abandono do câmbio fixo levaria - como levou - à reestruturação da dívida do governo e à quebra do sistema financeiro.
Crise ressalta necessidade de o Brasil retomar as reformas para viabilizar nova fase de expansão
Isto realimentava o problema à medida que tais temores se refletiam em elevações dos spreads soberanos e, consequentemente, do custo de capital para os setores público e privado, agravado a recessão e os problemas fiscais. De nada adiantaram planos de ajuste fiscal (mais rigorosos do mesmo hoje se dá crédito), ou promessas de ajuda externa (quantas vezes ouvimos o termo "blindaje"?).
Quando a deterioração atingiu um estado crítico, com fuga de capitais e queda acentuada da atividade econômica a Argentina viu-se forçada a desvalorizar a moeda, promover o corralito para estancar a fuga de depósitos e, por conta disso, mergulhou em profunda crise política, preparando o terreno para a volta do tradicional populismo latino-americano.
Os paralelos com a situação da periferia europeia eram mais do que desconfortáveis. Havia uma forma ainda mais extrema de câmbio fixo: a adoção de uma moeda única entre economias estruturalmente muito distintas e que não possuíam mecanismos de ajuste como os encontrados em economias continentais, como Estados Unidos e Brasil.
Os mercados de trabalho não eram integrados, isto é, salários na periferia e centro europeus eram determinados por considerações regionais, com pouquíssima migração de regiões com salários estagnados para regiões com salários em crescimento, o que levou à evolução muito distinta do custo do trabalho ajustado à produtividade.
Assim os custos subiram na periferia relativamente ao centro, processo equivalente à apreciação cambial, conduzindo a déficits externos maciços na periferia em contrapartida a superávits não menos relevantes no centro. Novamente isto não foi visto como problema, dada a crença na persistência dos ingressos de capitais por conta da integração financeira.
Contudo, quando sobreveio a crise de 2008-09 e os capitais voltaram ao centro, esta vulnerabilidade foi desnudada. Da mesma forma que na Argentina, a necessidade de redução de preços e salários levou a um forte processo recessivo, que contaminou as finanças governamentais. Adicionalmente as perdas bancárias forçaram os governos a garantirem, explícita ou implicitamente, depósitos, criando um imenso passivo público.
Aí ficaram patentes as duas outras falhas da integração europeia. A ausência de integração fiscal colocou um fardo desproporcional sobre a periferia, em particular nos países que, antes da crise, haviam tido desempenho exemplar de controle de gastos. Tiveram que cortar carne e osso, agravado o clima político e a queda da atividade.
Já a ausência de integração bancária deixou cada país exposto às vicissitudes do seu sistema financeiro, aprofundando a percepção que a conta dos problemas bancários recairia sobre o governo, e levando a prêmios de risco crescentes sobre sua dívida. Por outro lado, com os bancos carregados de títulos públicos, este mesmo aumento dos prêmios piorava sua situação patrimonial, o que não ocorreria (ou ocorreria em escala muito menor) caso a garantia aos bancos fosse supranacional.
Em suma, a crise europeia da primeira década do século foi uma repetição da crise argentina, mas em escala muito ampliada. Ampliada porque envolvia vários países; porque envolvia somas perto das quais o default argentino virava dinheiro de troco; porque ocorria pela primeira vez depois de quase um século em países desenvolvidos; e, finalmente, porque punha em xeque a construção política mais ambiciosa do Ocidente: a unificação europeia.
Hoje, 50 anos depois dos eventos, ainda me lembro do peso deste último elemento. Acreditava que a Europa não permitiria a dissolução do seu ousado projeto político e que, portanto, depois de todas as rodadas necessárias de barganha, os líderes europeus fariam o que seria necessário para manter a União Europeia. Eventualmente os países credores, Alemanha principalmente, acabariam pagando a conta em troca de um controle maior, ou seja, de uma criação de uma Europa federal.
Não contava, porém, com dois fatores perturbadores: a complexa governança europeia, que dava pesos iguais a países de dimensões muito distintas; e a polarização política acentuada pela própria recessão. Num primeiro momento a transição política de situação para oposição na Europa ocorreu dentro do mainstream, mas a persistência do crescimento baixo, ou mesmo negativo, terminou por corroer a credibilidade dos partidos políticos tradicionais.
Populistas como Beppe Grillo na Itália, Alexis Tsipiras (do Syriza), e Geert Wilders na Holanda, trazidos ao poder em meio a mensagens contrárias à austeridade fiscal e, de modo geral, hostis ao projeto de unificação europeia, transformaram o que poderia ser um jogo de cartas marcadas numa disputa real, abrindo inclusive espaço para a eleição de Marine Le Pen e sua Frente Nacional na França, a pá de cal no projeto europeu.
É bem verdade que, antes mesmo da eleição de Le Pen, a incapacidade da cúpula europeia de articular um plano ousado de resgate da periferia já havia forçado a saída da Grécia da moeda única, jogando aquele país numa crise ainda mais aguda que a experimentada entre 2008 e 2012.
Mais que isso, a saída grega (conhecida na época como Greekexit) terminou de vez com os resquícios da crença sobre a inviolabilidade do euro. Nas semanas e meses que se seguiram ao Greekexit, numa imitação agora da crise asiática de 15 anos antes, como dominós foram caindo os países da periferia.
Primeiro Portugal, assolado por problemas semelhantes aos gregos e, como a Grécia, percebido como pequeno demais para afetar o todo. Depois Chipre, Irlanda, Espanha e, finalmente, após uma luta inglória, também a Itália. Num espaço de meses toda a periferia europeia havia abandonado a moeda única, de repente domínio da Alemanha e seus satélites, com a França orbitando algo desajeitadamente entre o euro e o retorno do franco (finalmente decidido pela presidente Le Pen alguns anos mais tarde).
Desnecessário dizer que todos os países que abandonaram o euro pagaram caro (ainda que não se saiba até hoje qual teria sido o custo de permanecer atrelado ao euro). Da mesma forma que na Argentina, no começo do século, a dívida pública se tornou impagável, tendo sido convertida forçosamente nas novas moedas nacionais redivivas.
É verdade que credores domésticos sofreram relativamente pouco no processo (não quero dizer que sofreram pouco, apenas consideravelmente menos do que outras classes de credores). Sim, houve uma redução modesta no valor nominal da dívida em vários casos (não todos) e, sim, com as taxas de juros repactuadas e fixas, a aceleração da inflação nos primeiros anos do novo regime acabou por impor um ônus adicional aos poupadores nacionais.
Da mesma forma, o sistema bancário em muitos destes países (também não todos) teve que ser nacionalizado, reconhecendo de direito uma situação de fato, visto que os governos nacionais eram os garantidores últimos da dívida.
Por conta disto tais países passaram por um período recessivo adicional, mas, de forma não surpreendente, dada a experiência argentina, vários retomaram o crescimento em prazos de um a dois anos. É bem verdade que cresciam a partir de níveis muito reduzidos de produto, algo entre 15% e 20% abaixo do seu potencial (talvez até mais se as novas técnicas psicohistóricas de aferição de produto potencial são tão precisas quanto a nova geração de economistas acredita). As melhores estimativas atuais sugerem que, em até quatro anos, a maior parte deles já operava em intervalos próximos ao potencial.
O que talvez não fosse esperado era o custo que a dissolução do euro impôs aos países que nele permaneceram. A começar porque as perdas associadas à reestruturação das dívidas periféricas afetaram fortemente os bancos dos países credores, onde, afinal de contas, acumulavam-se os créditos contra a periferia. Incluem-se, entre estes, os bancos centrais, que, por meio do Target 2, também mantinham enorme exposição à periferia.
As perdas bancárias do centro europeu, somadas à monumental apreciação do euro relativamente às moedas periféricas, tiveram impacto extremamente negativo sobre estas economias.
A locomotiva exportadora alemã em particular foi duramente atingida, visto que suas vantagens em termos de custos foram revertidas pela desvalorização na periferia. Por outro lado, a retração de crédito bancário - por conta das elevadas perdas patrimoniais - afetaram a demanda interna, tanto consumo, quanto investimento. E, completando o quadro, a necessidade do governo alemão recapitalizar os bancos partindo de uma situação de endividamento já delicada, levou a um aumento expressivo do custo de captação do Tesouro alemão.
É verdade que, no primeiro momento, a Alemanha teve um desempenho muito superior ao da periferia, mergulhada ainda na crise pós-desvalorização. Mas, passados alguns anos, o país voltou a ser referido como o homem doente da Europa, levando ao fim do longo reinado democrata-cristão e abrindo espaço para a hegemonia socialdemocrata.
"Ironia" é uma palavra grega e não deixa de ser irônico que a Grécia, uma vez superada a desvalorização e o desastrado governo do Syriza, tenha apresentado durante muitos anos desempenho consideravelmente superior ao alemão.
Mas isto veio depois. No momento da ruptura e nos 18 a 24 meses que se seguiram, o que se observou foi uma queda adicional da atividade europeia que rapidamente se espalhou, ainda que em escala não tão dramática.
Os EUA conseguiram evitar o "despenhadeiro fiscal" que se temia no fim de 2012, embora o presidente Obama, mesmo reeleito, tenha se tornado refém do Congresso de maioria republicana nas duas casas na primeira metade de seu segundo mandato. Cortes de impostos foram prorrogados e os cortes de gastos algo diluídos no tempo, face à resistência republicana à redução das despesas militares.
Apesar disso, os ventos contrários vindos da Europa mantiveram a recuperação morna, levando, na segunda metade do segundo mandato, à recuperação da maioria democrata na Câmara e Senado e ao fim melancólico do Tea Party.
De fato, apenas no final do governo Obama a economia americana voltou a crescer com maior vigor, após o longo processo de ajuste do endividamento excessivo das famílias. A eliminação da Lei Dodd-Frank, substituída por uma versão mais moderna da lei Glass-Steagall, forçou a separação das atividades de bancos de investimento e comercial1, levando a uma expansão mais saudável do crédito. A flexibilidade do mercado de trabalho nos EUA também ajudou e o impulso advindo da exploração de petróleo e gás levou finalmente à recuperação da economia americana após quase oito anos de crise.
Já a China, ainda presa entre o status quo e a necessidade de alterar seu modelo de crescimento em favor do consumo, experimentou anos de baixo crescimento (para os padrões chineses da época), resultado do reduzido dinamismo do comércio internacional e do investimento excessivo nos anos anteriores à dissolução do euro. Apenas a mudança da liderança política no começo dos anos 20 conseguiu superar o impasse, recolocando o gigante asiático novamente em rota de crescimento acelerado, ainda que inferior ao observado no fim do século XX e início do século XXI.
As consequências para o Brasil não foram devastadoras, mas foram certamente negativas. Preços de commodities reverteram a tendência de alta e perderam fôlego privando o país dos ganhos de termos de troca que marcaram a primeira década do século.
A exploração do petróleo da camada pré-sal, tida por muitos como o caminho para a prosperidade, teve resultados bem mais modestos, em parte por conta do fim do superciclo de commodities, em parte pelo insucesso do modelo de exploração, limitado pela capacidade financeira da Petrobras.
O lado positivo desta história foi a necessidade do país retomar o processo de reformas, que eventualmente levou a nova aceleração do crescimento, anos mais tarde, embora em bases mais sólidas.
Enfim, acho importante deixar aqui meu depoimento sobre este período turbulento para as novas gerações, ainda mais agora que renascem as conversas sobre a moeda única latino-americana. Eu me pergunto de que vale ter um Googlechip no córtex e as conexões neurais ligadas ao Coletivo Google se a imensa maioria dos economistas ainda encara a história econômica como um relato tedioso do qual pouco se pode aprender."
1 Obviamente, 45 anos depois o novo Glass-Steagall foi revogado e observamos novamente a formação de imensos conglomerados financeiros, sob alegação da necessidade de fazer frente aos rivais chineses e indianos.
Alexandre Schwartsman, doutor em economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil. É professor do Insper e sócio-diretor da Schwartsman & Associados.



[[O crescimento chinês está em desaceleração e a maioria dos analistas acredita que as taxas reais são bem menores que as oficiais. Mas eles estão errados em qualificar a expansão mais lenta como um desastre potencial. Desaceleração é exatamente o que a China e o mundo necessitam. Mesmo em meio à transição política que ocorre uma vez por década, a desaceleração sugere que Pequim está levando a sério a necessidade de reduzir a orgia de investimentos dos últimos dez anos e reequilibrar a economia.
Muitos analistas temem que o crescimento bem mais lento na China resultará em forte aumento de distúrbios sociais. Não acredito. Mesmo se o crescimento durante a próxima década diminuir para 3%, como espero.]]


O que significará o reequilíbrio da China para o mundo?
Por Michael Pettis - Valor, 13-09-2012
A médio e longo prazo, o grande reequilíbrio chinês será bom para quase todo mundo, mas no curto prazo podemos esperar incertezas políticas na China e dor aguda para os exportadores de commodities
VALOR, 13-09-2012
O crescimento econômico chinês está perceptivelmente em desaceleração. Embora a taxa de 7,6% de crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) registrada no segundo trimestre deste ano pudesse satisfazer a grande maioria dos países em desenvolvimento, é muito menor do que a dos anos anteriores, de crescimento médio entre 10% e 11%. Porém, mesmo essa taxa de crescimento mais baixa subestima o problema.
A maioria dos analistas não acredita nos dados oficiais. O crescimento do uso de energia e o consumo de energia elétrica neste ano ficaram entre inalterado e negativo, sugerindo que o crescimento real da economia chinesa é substancialmente menor do que indicam os números oficiais. Alguns economistas argumentam que o crescimento real da China pode ter ficado na metade das taxas oficiais.
As condições são tão alarmantes que, várias vezes, neste ano, o premiê Wen Jiabao alertou que a economia está sob severa pressão econômica. Alguns especialistas estão exortando Pequim a reduzir drasticamente a taxa de juros, expandir o crédito bancário, aumentar os investimentos em infraestrutura e salvar a China e o mundo do desastre iminente.
Mas eles estão errados em qualificar o crescimento mais lento como um desastre potencial. Desaceleração é exatamente o que a China e o mundo necessitam. Pequim não teve êxito, em suas muitas tentativas, a partir já de 2005, de reequilibrar uma economia excessivamente dependente de investimentos e comércio, mas as coisas podem ter finalmente mudado. Durante os últimos seis meses, pode ter começado o urgente ajuste econômico da China.
O processo de ajuste não será fácil. Os níveis de endividamento aumentaram drasticamente e há muitos anos o investimento não gera mais retorno suficiente para cobrir o serviço correspondente da dívida. Os investimentos, porém, têm sido a única fonte importante de crescimento há 30 anos. A China defronta-se com o problema de que mais investimentos produzirão uma crise de endividamento, e menos investimentos resultarão em redução acentuada do crescimento.
O crescimento bem mais rápido do consumo deverá ajudar a resolver o problema, mas sendo a participação do consumo chinês no PIB pouco superior a metade da média mundial, levará muitos anos para que o consumo possa crescer suficientemente para substituir o investimento como motor de crescimento da economia chinesa. Além disso, há razões estruturais que tornam muito difícil incrementar o consumo.
A chave para aumentar o consumo é aumentar a participação da renda familiar no PIB, que é muito inferior à de qualquer outra economia no mundo. Elevar a parcela de renda familiar no PIB requer aumentar os salários na China, valorizar o yuan e, o mais importante, reduzir o imposto oculto que as famílias implicitamente pagam às instituições que lhes tomam dinheiro emprestado a juros artificialmente baixos.
Mas isso fará com que o crescimento desacelere acentuadamente ao mesmo tempo em que a economia for reequilibrada. Os juros baixos, em particular, transferem cerca de 5% a 8% do PIB, todo ano, dos poupadores domésticos para os tomadores de seus recursos, e, portanto, são tanto a causa principal do desequilíbrio econômico chinês e a principal fonte do crescimento espetacular da China. Forçar uma elevação da taxa real de juros é o passo mais importante que Pequim pode tomar para reduzir gastos desnecessários. Inevitavelmente, porém, o aumento da taxa de juros retardará o crescimento.
Pequim reduziu os juros duas vezes, nos últimos meses, e os políticos estão sob pressão para reduzi-los ainda mais, mas tendo a inflação caído rapidamente neste ano, o retorno real para os correntistas domésticos e o custo real dos empréstimos efetivamente dispararam, nos últimos meses. A China, em outras palavras, está finalmente corrigindo uma de suas piores distorções econômicas.
Juros mais altos, se forem mantidos, inevitavelmente reduzirão o crescimento dos investimentos, e embora o investimento na China seja desperdiçado numa escala nunca antes vista, talvez, na história - e por isso deve urgentemente ser reduzido, porque tem sido a maior fonte de atividade econômica -, reduzi-lo será doloroso no curto prazo. Infelizmente, a taxa de crescimento dos investimentos chineses precisará cair durante muitos anos, antes que a participação da renda familiar no PIB seja suficientemente elevada para que o consumo substitua o investimento como motor do crescimento.
Em outras palavras, à medida que a China se reequilibrar, seria de se esperar uma forte desaceleração do crescimento e rápida elevação das taxas de juros reais, que é exatamente o que estamos vendo. Em vez de entrar em pânico, deveríamos ficar aliviados com o fato de Pequim estar finalmente resolvendo seus problemas mais importantes. Demorou muito tempo, mas a desaceleração neste ano, mesmo em meio à transição política que acontece uma vez em cada década, sugere em que medida Pequim está levando a sério a necessidade de reduzir a orgia de investimentos dos últimos dez anos e reequilibrar a economia.
A redução dos investimentos vai derrubar as commodities, com impacto negativo em países como o Brasil
Muitos analistas temem que o crescimento bem mais lento na China resultará em forte aumento de distúrbios sociais e criará perturbações econômicas em todo o mundo, mas isso não será, necessariamente, verdade, se o ajuste for bem administrado. É importante lembrar que o reequilíbrio chinês exigirá que a renda familiar cresça mais rapidamente que o PIB durante muitos anos, e isso pode ser conseguido através da transferência de riqueza do setor estatal para o setor doméstico.
Isso pode ser politicamente difícil, mas a China não tem outra maneira de impor um crescimento à taxa de expansão da renda domiciliar. Mesmo que o crescimento chinês durante a próxima década diminua para 3%, como espero, mas a renda familiar continue crescendo a 5% ou 6% por causa dessas transferências de riqueza, isso não será, nem de longe, tão socialmente perturbador como muitos acreditam.
E, quanto ao resto do mundo, o que a economia mundial necessita da China não é maior crescimento do PIB, porém mais demanda líquida. O reequilíbrio chinês proporcionará exatamente isso, apesar de que, de início, será difícil baixar a taxa de poupança tão rapidamente quanto a taxa de investimentos. Isso implica que o superávit comercial chinês provavelmente crescerá durante um ano ou dois, antes de começar a cair, e assim contribuirá para o crescimento mundial.
Mas nem todo mundo se beneficiará de um reequilíbrio chinês. À medida que a China reduzir a taxa de investimentos, os preços das commodities minerais deverão cair acentuadamente. Isso é bom para a maioria dos países, mas irá impactar negativamente países produtores como a Austrália e o Brasil, que "engordaram" devido ao excessivo investimento chinês.
É especialmente importante, para os brasileiros, entender por que o reequilíbrio chinês terá um impacto negativo sobre os preços das commodities minerais, independentemente da velocidade da desaceleração do crescimento mundial. O reequilíbrio significa que o crescimento dos investimentos precisa cair de seus níveis surpreendentes superiores de 20% ao ano para perto de zero ou mesmo negativos. Não poderá haver reequilíbrio se isso não acontecer, e Pequim compreende quão urgente o problema se tornou.
Os preços de uma série de metais já caíram drasticamente, refletindo preocupações diante da desaceleração do crescimento chinês, mas ainda há um longo caminho descendente para as cotações, por ao menos três razões. Primeiro, os produtores de commodities em todo o mundo não parecem ter acompanhado o debate na China tanto quanto deveriam. Em minhas discussões com altas autoridades nos setores de commodities no Brasil, Austrália, Peru, Chile e até mesmo na Indonésia, parece-me que muitos produtores não estão cientes de quão dramaticamente o consenso mudou nos últimos dois anos na China. Eles não entenderam a profundidade dos problemas estruturais chineses e como Pequim agora preocupa-se com isso. A preocupação no âmbito da elite chinesa pode ser melhor exemplificado pelo crescimento extraordinário da fuga de capitais da China desde o início de 2010.
Segundo, embora o consenso entre economistas chineses e estrangeiros em torno do crescimento econômico esperado para o país tenha baixado drasticamente, não caiu o suficiente. Apenas dois anos atrás, a maioria dos analistas esperava taxas médias de crescimento de 8% a 10% na China durante a próxima década. Hoje a maioria dos analistas acredita em um crescimento médio de 5% a 7% durante os próximos dez anos, sendo que os economistas chineses tendem a apostar no piso dessa faixa.
Os precedentes históricos sugerem que devemos ser cautelosos. Ao longo dos últimos 100 anos, os países que desfrutaram milagres de crescimento puxados por investimentos sempre tiveram de sofrer ajustes muito mais difíceis do que previam até os mais céticos. Afinal, havia muitos brasileiros, no fim da década de 1970, que se preocupavam com a possibilidade de o milagre de crescimento brasileiro ser insustentável e que iria acabar mal, mas ninguém esperava as taxas de crescimento negativas da década perdida dos anos 1980.
Nos últimos dez anos, as compras chinesas de ferro cresceram 16% ao ano, puxando a produção global
Ao aproximar-se o fim da década de 1980, para dar outro exemplo, alguns céticos ousados proclamavam que o milagre japonês estava morto e previam que as taxas de crescimento japonesas cairiam para 3% ou 4%. Ninguém, sequer os mais céticos, esperavam 20 anos de crescimento abaixo de 1%, mas foi o que aconteceu. E quando a URSS que estava crescendo a taxas miraculosas na década de 1950 e 1960, levando a maioria dos analistas, inclusive o presidente Kennedy, a acreditar que o país estava a caminho de ultrapassar os Estados Unidos em duas ou três décadas, nem mesmo o maior cético anticomunista poderia ter previsto as duas décadas seguintes de estagnação.
Nós tendemos a cometer os mesmos erros ao longo da história, e eu suspeito que, embora o consenso atual sobre o crescimento chinês durante a próxima década tenha caído significativamente nos últimos dois anos, ainda é muito alto. A aritmética do reequilíbrio sugere que as taxas de crescimento serão muito menores do que as esperadas. Mesmo que Pequim seja capaz de manter a renda familiar crescente ao mesmo ritmo durante os dez anos passados, quando as condições chinesa e mundial foram tão boas quanto jamais poderiam ser, um reequilíbrio efetivo ao longo dos próximos dez anos não poderá ocorrer a taxas médias de crescimento do PIB muito acima de 3%.
Esse crescimento menor não será distribuído uniformemente, é claro, e devemos esperar taxas de crescimento relativamente mais altas no início do período (talvez de 5% a 6% durante os próximos dois anos, à medida que o investimento for sendo reduzido aos poucos) e menores taxas de crescimento no fim do período. Mas à medida que isso acontecer, a taxa de crescimento chinesa de longo prazo consensual continuará a diminuir drasticamente, e isso afetará ainda mais os preços das commodities.
A terceira razão pela qual devemos esperar que os preços das commodities caiam muito mais tem a ver com a natureza do processo de reequilíbrio chinês. Durante 30 anos, e especialmente nos últimos dez anos, o crescimento extraordinário do PIB chinês foi impulsionado por taxas ainda mais altas de crescimento do investimento, gerando, para a China, as maiores taxas de investimento e de crescimento dos investimentos na história. O crescimento do consumo não conseguiu acompanhar esse ritmo durante este período.
Mas reequilíbrio significa, por definição, que nos próximos anos, à medida que o crescimento do consumo superar o crescimento do PIB, o investimento terá de crescer mais lentamente do que o PIB. Simples aritmética nos diz que, mesmo que o crescimento do PIB chinês continue a ser elevado, o crescimento do investimento deverá entrar em colapso.
Nas duas últimas décadas, a demanda por minério de ferro cresceu 6%. A demanda chinesa nos últimos dez anos, que cresceu 16% ao ano, foi responsável por quase todo esse crescimento. Excluída a China, a demanda mundial cresceu apenas 2% ao ano. Esse extraordinário crescimento da demanda chinesa deveu-se apenas ao fato de o crescimento do investimento na China ter ultrapassado 20% ao ano, e o crescimento do investimento tende a consumir muitas commodities minerais.
Mas em um mundo novo onde o limite superior para o crescimento do investimento na China não será superior a 2% a 4% durante os próximos dez anos (e, na verdade, acredito que será negativo), o crescimento desproporcional da demanda chinesa por commodities minerais praticamente desaparecerá. É por isso que o reequilíbrio chinês será tão negativo para os preços das commodities minerais.
Então, será que a China iniciou efetivamente seu Grande Reequilíbrio? É muito cedo para dizer, mas está cada vez mais claro que quanto mais Pequim adiar as medidas necessárias, pior será. No entanto, existem razões políticas que tornam difícil, para Pequim, caminhar tão rapidamente quanto gostaria. Entre outras coisas, um reequilíbrio econômico chinês significa que o rápido crescimento da riqueza do setor estatal, que beneficia principalmente a elite política chinesa, deverá diminuir drasticamente. É provável que a elite vá resistir ferozmente, como já demonstraram os recentes escândalos políticos.
Mas, por ora, a China precisará reequilibrar-se ou enfrentar uma crise, e as evidências sugerem que Pequim finalmente começou a forçar o processo de ajuste. Exportadores de commodities podem não gostar dele, e a elite econômica chinesa pode não gostar dele, mas a China não tem escolha. A médio e longo prazos, o grande reequilíbrio chinês será bom para quase todo mundo, mas no curto prazo podemos esperar incertezas políticas na China e dor aguda para os países exportadores de commodities. (Tradução de Sergio Blum)

Michael Pettis, professor de finanças da Universidade de Pequim e membro sênior do Carnegie Endowment.

Este é o terceiro de uma série de artigos sobre a crise econômica atual e seus prováveis desdobramentos no mercado internacional e no Brasil, feitos por renomados economistas a pedido do Valor.


Desordem na engrenagem da civilização
por Luiz Gonzaga Belluzzo
O mundo não padece apenas dos sofrimentos de uma crise periódica do capitalismo, mas, sim, das dores de um desarranjo nas engrenagens que sustentam a vida civilizada
VALOR, 14-09-2012
O Valor me convida para arriscar prognósticos a respeito da crise internacional e avançar projeções sobre o desempenho da economia brasileira. Não sei se abuso da confiança que me empresta o jornal, mas vou traduzir livremente o significado de prognósticos. Sabedor das precariedades que cercam as previsões em geral e especialmente as antecipações dos economistas, farei "Perguntas ao Futuro".
Para começo de conversa, digo que as questões suscitadas nas origens da vida moderna ainda não obtiveram resposta. Nos tempos de prosperidade, elas hibernam e aí dos que ousam despertá-las. Mas no fragor das crises elas voltam a assombrar o mundo dos vivos. Nesses tempos, a incômoda pergunta não quer calar: em que momento homens e mulheres - sob o manto da liberdade e de igualdade - vão desfrutar da abundância e dos confortos que o capitalismo oferece em seu desatinado desenvolvimento?
O capitalismo da grande indústria, da finança e da construção do espaço global, entre crises e recuperações, exercitou os poderes de transformar e dominar a natureza - até mesmo de reinventá-la - suscitando desejos, ambições e esperanças. A versão panglossiana desses prodígios nos ensina que a admirável inclinação para revolucionar as forças produtivas hão de aproximar homens e mulheres do momento em que as penas do trabalho subjugado pelo mando de outrem seriam substituídas pelas delícias e liberdades do ócio com dignidade.
Maior concorrência reverteu tendências à maior igualdade observadas após a Segunda Guerra até os anos 70
Para muitos, estaria prestes a se realizar a utopia de trabalhar menos para viver mais. Os avanços da microeletrônica, da informática, da automação dos processos industriais já permitem vislumbrar, dizem os otimistas, a libertação das fadigas que padecemos em nome de uma ética do trabalho que só engorda os cabedais dos que nos dominam. Veja o caro leitor que alguns cidadãos já podem trabalhar em casa, longe dos constrangimentos da hierarquia da grande empresa e assim escolher à vontade entre o tempo livre e as fadigas do labor.
Esses enredos foram contados nos bons tempos da globalização e das bolhas financeiras e de consumo: a economia da inovação e da inteligência estaria prestes a substituir a economia da fábrica, dos ruídos atormentadores e dos gases tóxicos. As transformações tecnológicas e suas consequências sociais ensejariam a proeza de realizar o projeto da autonomia do indivíduo, aquele inscrito nos pórticos da modernidade. A autonomia do indivíduo significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e do respeito ao outro.
O projeto da autonomia do sujeito é uma crítica permanente e inescapável da submissão aos poderes - públicos e privados - que o cidadão não controla. A globalização, o avanço tecnológico e transformação das formas de trabalho estariam a realizar esta maravilhosa promessa da modernidade.
Até mesmo os críticos mais impiedosos reconhecem que a economia capitalista engendrou formas de sociabilidade que descortinaram a possibilidade de libertar a vida humana e suas necessidades das limitações impostas pela natureza e pela submissão pessoal. A indústria moderna, essa formidável máquina de eliminação da escassez, oferece aos homens e mulheres a "realidade possível" da satisfação dos carecimentos e da libertação de todas as opressões pelo outro.
Mas qual é a realidade que se esconde sob os pretextos dessa fantasia?
Na marcha de sua realidade real, o capitalismo incitou os anseios de realização pessoal, mas também fez emergir estruturas técnico-econômicas e formas de dependência que agem sobre o destino dos protagonistas da vida social como forças naturais que frequentemente destroem a natureza, fora do controle da ação humana.
Em "Eros e Civilização", Marcuse falou da mútua e estranha fecundação entre liberdade e dominação na sociedade contemporânea. Para ele, a produção e o consumo reproduzem e justificam a dominação. Mas isso não altera o fato de que seus benefícios são reais: amplia as perspectivas da cultura material, facilita a obtenção das necessidades da vida, torna o conforto e o luxo mais baratos, atrai áreas cada vez mais vastas para a órbita da indústria. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo paga com o sacrifício de seu tempo, de sua consciência e de seus sonhos nunca realizados.
A concorrência generalizada se impõe aos indivíduos como uma força externa, irresistível. Por isso é preciso intensificar o esforço no trabalho na busca do improvável equilíbrio entre a incessante multiplicação das necessidades e os meios necessários para satisfazê-las, buscar novas emoções, cultivar a angustia porque é impossível ganhar a paz.
O avanço tecnológico e os ganhos de produtividade não impediram a intensificação do ritmo de trabalho. Essa foi a conclusão de estudos recentes da Organização Internacional do Trabalho e de outras instituições que lidam com o assunto. Entre os que estão empregados, o trabalho se intensificou. Nos Estados Unidos, por exemplo, as horas trabalhadas cresceram em todos os setores.
No outro lado da cerca, estão os que se tornaram compulsoriamente independentes do trabalho, os desempregados. O desemprego global cresceu muito no mundo desenvolvido, ao mesmo tempo em que o trabalho se intensificou nas regiões para onde se deslocou a produção manufatureira. As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações comerciais, industriais e de serviços em geral.
As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das corporações internacionalizadas sobre grandes massas de trabalhadores, permitindo a "arbitragem" entre as regiões e nivelando por baixo a taxa de salários. As fusões e aquisições acompanharam o deslocamento das empresas que operam em múltiplos mercados. Esse movimento não só garantiu um maior controle dos mercados, mas também ampliou o fosso entre o desempenho dos sistemas empresariais "globalizados" e as economias territoriais submetidas à regras jurídico-politicas do Estados Nacionais. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e debilitam a força dos sindicatos e dos trabalhadores "autônomos", fazendo periclitar a sobrevivência dos direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência.
Restringem, portanto, a soberania estatal e impedem que os cidadãos, no exercício da política democrática, tenham capacidade de decidir sobre a própria vida.
As reformas realizadas nas últimas décadas cuidaram de transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo em que buscaram o Estado e sua força coletiva para enfrentar a concorrência desaçaimada e, nos tempos de crise, limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de concentração da riqueza e da renda como submeteu os cidadãos às angústias da insegurança.
Os efeitos do acirramento da concorrência entre empresas e trabalhadores são inequívocos: foram revertidas as tendências à maior igualdade observadas no período que vai do final da Segunda Guerra até meados dos anos 70 - tanto no interior das classes sociais quanto entre elas. Na era do capitalismo "turbinado" e financeirizado, os frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduram a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.
Para os mais fracos, a "liberação" do esforço e das penas do trabalho se realiza sob a forma do desemprego, da crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, da queda dos salários reais, da exclusão social.
Nos Estados Unidos, os fatores decisivos para o comportamento decepcionante dos rendimentos da maioria da população foram, sem dúvida, a diminuição do poder dos sindicatos e a redução no número de sindicalizados, o crescimento do trabalho em tempo parcial e a título precário e a destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria de transformação, sob o impacto da concorrência chinesa.
O lento crescimento da renda das famílias de classe média foi acompanhado pelo aumento das horas trabalhadas, por conta da maior participação das mulheres, das casadas em particular, no mercado de trabalho. Nas famílias com filhos, as mulheres acrescentaram, entre 1979 e 2000, 500 horas de trabalho ao total despendido pelo casal.
Não resta sequer a ilusão de que a maior desigualdade foi compensada por uma maior mobilidade das famílias e dos indivíduos, desde os níveis mais baixos até os mais elevados da escala de renda e riqueza. Para surpresa de muitos, o estudo mostra que a mobilidade social nunca foi tão baixa no país das oportunidades. Há 40 anos, se alguém perdesse o emprego, poderia se mobilizar contra o patronato ou o governo, acusando-o de estar executando uma política econômica equivocada. Ainda que se possa fazer isso hoje, provavelmente o governo vai responder que tudo ocorreu como consequência inevitável da globalização.
Escrevendo em 1933, das profundezas da Grande Depressão, Keynes confessou que, nos momentos de crise grave, a relação entre a observação crítica e as soluções pode se esgarçar. Ele dizia: "O capitalismo internacional e individualista decadente, sob o qual vivemos desde a Primeira Guerra, não é um sucesso. Não é inteligente, não é bonito, não é justo, não é virtuoso - "and it doesn't deliver the goods". Em suma, não gostamos dele e já começamos a menosprezá-lo. Mas, quando imaginamos o que se poderia colocar no seu lugar, ficamos extremamente perplexos."
O individualismo encontra reforço no aparecimento de milhões de empresários terceirizados
Na crise atual, assim como nos anos 30 do século passado, os homens e mulheres do poder deliram entre as fantasias do eterno retorno do mesmo e as ilusões do decisionismo incondicionado e descolado da correlação de forças sociais. Para uns, os da margem esquerda, se houver vontade política, tudo é possível. Na outra margem, a da direita, multiplicam-se as falácias do economicismo, a capitulação diante da "objetividade" das condições existentes.
Nos Estados Unidos dos republicanos e na Europa da senhora Merkel está em curso uma tentativa de reestruturação regressiva. David Brooks, colunista do "The New York Times" e autor do livro "Bobos in Paradise", escreveu um artigo intitulado "O que pensam os Republicanos". Os Republicanos, diz Brooks, pensam que o capitalismo americano está ameaçado pela segurança excessiva concedida aos cidadãos pelo Estado do bem-estar, em detrimento do espírito de iniciativa e da inovação. A fuzilaria dos ultraconservadores concentra a pontaria na proteção à velhice e aos doentes. Caso esse peso morto não seja extirpado, a sociedade americana será entregue às letargias da estagnação.
"Nos Estados Unidos, assim como na Europa, afirmam os republicanos, o Estado do bem-estar não oferece segurança nem dinamismo. A rede de segurança é tão dispendiosa que deixará de existir para as próximas gerações. Ao mesmo tempo, o atual modelo transfere recursos dos setores inovadores para setores estatais já inchados, como saúde e educação. O modelo de bem-estar social privilegia a segurança em lugar da inovação. Esse modelo... se tornou uma máquina a gigantesca que redistribui dinheiro do futuro para a população mais velha."
Cada vez mais inclinada à direita, a opinião republicana deplora o peso excessivo do Estado munificente e investe contra as tentativas de disciplinar as forças simultaneamente criadoras e destrutivas do capitalismo. A visão republicana da economia e da sociedade advoga abertamente a concorrência darwinista: a sobrevivência do mais forte é a palavra de ordem. Tombem os fracos pelo caminho.
A ação do Estado, particularmente da sua prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo intenso processo de homogeneização ideológica de celebração do individualismo que se opõe a qualquer interferência no processo de diferenciação da riqueza, da renda e do consumo efetuado através do mercado capitalista.
Cresce a resistência à utilização de transferências fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à capacidade impositiva e de endividamento do setor público. Isso porque a globalização, ao tornar mais livre o espaço de circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados, desarticulou a velha base tributária do Estado do bem-estar, erigida sobre a prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
A ética da solidariedade é substituída pela ética da eficiência e, desta forma, os programas de redistribuição de renda, reparação de desequilíbrios sociais e assistência a grupos marginalizados têm encontrado forte resistência na casamata republicana. Não há dúvida de que este novo individualismo tem sua base social originária na grande classe média produzida pela longa prosperidade e pelos processos mais igualitários que predominaram na era keynesiana.
Hoje, o novo individualismo encontra reforço e sustentação no aparecimento de milhões de empresários terceirizados e autonomizados, que são criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e na organização das grandes empresas.
A ação do Estado é vista como contraproducente pelos bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas percepções convergem na direção da "deslegitimação" do poder administrativo e na desvalorização da política. Aparentemente estamos numa situação histórica em que a "grande transformação" ocorre no sentido contrário ao previsto por Karl Polanyi: a economia trata de se libertar dos grilhões da sociedade.
A resposta esperançosa à Pergunta ao Futuro depende crucialmente da capacidade de mobilização democrática e radical dos Deserdados, os perdedores na liça da concorrência global. Desgraçadamente, no momento em que escrevo este artigo, os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva são ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlados pela hegemonia das banalidades. Desconfio que o mundo não padeça apenas sofrimentos de uma crise periódica do capitalismo, mas, sim, as dores de um desarranjo nas engrenagens que sustentam a vida civilizada, sob o olhar perplexo e impotente das vítimas.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

Este é o quarto de uma série de artigos

OS LABIRINTOS DO CAPITAL
Por Luiz Gonzaga Belluzzo | Para o Valor, de São Paulo
A transfiguração do dinheiro, encarnação do valor e da riqueza, em suas formas "desenvolvidas" é a história de todas as crises
Valor Econômico, Eu & Fim de Semana, 31-08-2012


A MACROECONOMIA DA TIA JOAQUINA



por Luiz Gonzaga Belluzzo
A cada rodada de valorização de ativos ampliavam-se os desequilíbrios potenciais nos balanços de famílias e elevava-se o déficit em conta corrente
Valor Econômico - 02/10/2012




Daqui para onde?
[Os riscos de uma segunda recessão global] - quinto artigo
"O futuro da economia mundial oscila entre um quadro de pessimismo moderado e de pessimismo acirrado (a partir de uma crise do euro em grandes proporções). Minha aposta é um cenário de "pessimismo moderado": a economia americana continua patinando em um crescimento baixo e elevado desemprego, sem uma recuperação mais robusta; a zona do euro vai ficar empurrando com a barriga a crise do euro, implementando soluções ad hoc conforme os problemas forem aparecendo", escreve Luiz Fernando de Paula, professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (FCE/UERJ) e presidente da Associação Keynesiana Brasileira (AKB), em artigo publicado no jornal Valor, 17-09-2012.
Segundo ele, "a crise econômica atual é uma crise de um mundo excessivamente liberalizado, em particular no que se refere às finanças globais. A sociedade está ameaçada pelas forças avassaladoras do livre mercado e pela inação e miopia dos governantes e elites políticas". "O futuro da economia mundial e a geopolítica global estão em aberto", conclui o economista.

por Luiz Fernando de Paula

A reconstrução de uma nova era de prosperidade só será possível repensando-se profundamente a relação Estado e economia, a geopolítica mundial, o grau de autonomia das politicas públicas frente a globalização, o formato da regulação do sistema financeiro e o sistema de proteção social

Valor Econômico, 17-09-2012

Sem dúvida estamos vivendo um daqueles momentos em que a incerteza radical é percebida de forma extremada, relacionada principalmente às expectativas empresariais de longo prazo no que se refere a um futuro incerto e nebuloso. Keynes assim explicou o que entendia por incerteza não probabilística: "Desejo explicar que por conhecimento 'incerto' não pretendo apenas distinguir o que é conhecido como certo do que apenas é provável. Neste sentido, o jogo de roleta não está sujeito à incerteza; nem sequer a possibilidade de se ganhar na loteria. (...) Até as condições meteorológicas são apenas moderadamente incertas. O sentido que estou usando o termo é aquele segundo o qual a perspectiva de uma guerra europeia é incerta, o mesmo ocorrendo com o preço do cobre e da taxa de juros daqui a 20 anos, ou a obsolescência de uma nova invenção (...) Sobre estes problemas não existe qualquer base científica para um cálculo probabilístico. Simplesmente nada sabemos a respeito".
Quem consegue fazer um prognóstico sobre o futuro da economia mundial nos próximos, digamos, dois ou três anos? Costumo dizer aos meus alunos que para fazer prognóstico sobre o futuro da economia é melhor contratar um astrólogo do que um economista, e acrescento que não se trata de uma brincadeira. Isto porque acontecimentos econômicos são fortemente "path dependent", isto é, dependem do comportamento e da interação dos agentes ao longo do caminho, o que pode resultar em diferentes trajetórias. Contudo, como me pediram aqui para "arriscar previsões" a respeito do desenrolar da crise internacional, e os possíveis impactos sobre a economia brasileira, vou fazer algumas breves especulações.
O cenário internacional está bastante nebuloso quanto à recuperação econômica mundial, e em particular em relação ao risco de um novo contágio causado pelo aprofundamento da crise do euro, com fortes impactos sobre as outras regiões. Não há região hoje que puxe o crescimento mundial, seja os países mais dinâmicos asiáticos, EUA e muito menos a zona do euro. Temos assim o forte risco de estarmos numa "double dip recession", uma dupla recessão, que pode ao fim e ao cabo vir a caracterizar uma Grande Recessão.
Cabe ressaltar que a Grande Depressão de 1929-1938, na realidade, foi a agregação de duas recessões em 1929-1933 e 1937-1938, entremeada por uma breve recuperação abortada pela tentativa, em 1937, de se fazer um ajuste fiscal prematuro nos Estados Unidos.
Observa-se na Grande Recessão atual, um primeiro período da crise, que foi de meados de 2007 ao início de 2009, iniciando-se com a crise do subprime e culminando com a falência do Lehman Brothers, quando procurou-se evitar a depressão com uso intenso de uma politica econômica anticíclica, com o uso inclusive de instrumentos não tradicionais como a criação de instrumentos de liquidez para aquisição de ativos de diferentes maturidades na carteira das instituições financeiras pelo Federal Reserve (Fed, banco central americano) e um pacote de estímulos fiscais de quase US$ 800 bilhões nos EUA. Ao longo de 2009, contudo, com a recuperação dos preços dos ativos e dos lucros de muitas instituições financeiras, observa-se um ressurgimento de ideias liberais-conservadoras, e a atenção se volta para os desequilíbrios fiscais e dívida pública, abandonando-se prematuramente políticas contracíclicas na Europa e posteriormente (em 2010) nos Estados Unidos1.
Como se sabe, a vitória dos Republicanos, em novembro de 2010, tornou impossível a implantação de um novo programa de incentivos fiscais, ficando o governo de mãos amarradas. A tarefa de adoção de política contracíclica ficou, assim, a cargo do Fed, com suas medidas de afrouxamento monetário, que têm resultado na desvalorização da moeda americana e evitado uma deflação de preços e ativos.
Os limites desta política são claros: não adianta só colocar dinheiro na mão do setor bancário, se a demanda por empréstimos está baixa; dada a alta preferência pela liquidez dos agentes (bancos e famílias) há necessidade de uma política fiscal anticíclica mais ativa para restabelecer o nível geral dos gastos.
Hyman Minsky, economista keynesiano americano, sustentava que era fundamental, perante a eclosão de uma crise financeira, o governo atuar de forma estabilizadora através do "big bank" (BC como emprestador de última instância, para estabilizar preços dos ativos e evitar crise de liquidez) e do "big government" (gasto público contracíclico para sustentar demanda agregada e estabilizar emprego e renda). Está claro que o papel do "big government" está enfraquecido nos EUA, sendo que no caso da zona do euro a coisa é bem mais complicada, face à ausência de um papel mais definido de emprestador de última instância pelo BCE.
A semiestagnação da economia norte-americana, combinada com a crise da zona do euro e a desaceleração econômica recente dos países emergentes abrem uma segunda rodada de recessão mundial. A taxa de desemprego nos EUA encontra-se ainda acima de 8% da população economicamente ativa; já a na zona do euro a mesma taxa aumentou de 10% no início de 2011 para mais de 11% em 2012. Nesta última região, a recessão, embora atinja mais os países do sul da Europa, se aproxima de economias maiores, como França e Alemanha.
Evidentemente, o centro da crise atual é a zona do euro, às voltas com sérios problemas estruturais e, mais importante, com a falta de uma estrutura de governança global razoavelmente eficaz para lidar com seus problemas. A questão estrutural está relacionada, entre outras, à existência de uma forte heterogeneidade econômica dos países da zona do euro devido a níveis de competitividade e de inflação distintos, em um contexto de uma moeda única.
Este problema foi agravado pela política alemã em 2003-05 de contenção do salário que, associado a sua alta produtividade, ampliou os problemas de assimetria. Assim, após a introdução do euro, Alemanha, Holanda, Finlândia e Bélgica ampliaram seus superávits comerciais em detrimento dos demais países da região, que foram se tornando cada vez mais deficitários.
Sem poder recorrer as ajustes cambiais para restabelecer a competividade internacional da economia nacional e/ou emitir moeda para pagar suas dívidas, tais países tinham que escolher entre forçar a redução dos níveis de salários domésticos ou fazer uso de políticas fiscais para manter o crescimento do produto e emprego.
Os países da periferia europeia tiveram a facilidade de emitir dívida soberana e se endividar com juros alemães no mercado internacional. O endividamento externo alimentou espirais ascendentes dos preços dos ativos, permitindo bolhas imobiliárias em vários países. Como os governos não podem criar euros, eles devem gerar superávits fiscais suficientemente elevados para cobrir os juros e amortização da dívida, ou emitir dívida adicional para captar recursos junto ao setor privado, já que não podem se financiar junto ao BCE dada a restrição de atuar como emprestador de última instância do sistema financeiro.
Ficam claras as dificuldades dos governos nacionais rolarem suas dívidas a partir da crise de confiança gerada por conta da crise grega, e premência de enfrentarem seus desequilíbrios fiscais, ainda que as custas de um aprofundamento da recessão, já que superávits fiscais teriam que ser compensados por déficit do setor privado e superávit externo, o que não ocorre. Nessas condições, o ajuste fiscal acaba por se revelar em boa medida inócuo, uma vez que acarreta um aprofundamento do processo recessivo dos países da periferia europeia, que por sua vez deteriora as receitas fiscais, ensejando um círculo vicioso 2.
O futuro da economia mundial oscila entre o pessimismo moderado e o acirrado
A recessão europeia transmite seus efeitos negativos para outras regiões, em particular países que dependem mais fortemente das exportações para seu dinamismo econômico, como a China, que sofre com o baixo dinamismo das economias avançadas e com a dificuldade do governo dar uma resposta a crise como fez em 2008-09, quando respondeu a crise com um forte programa de investimentos públicos em infraestrutura. Começa a aparecer problemas no sistema financeiro, relacionados ao aumento da inadimplência, agora agravados pela desaceleração econômica.
A economia chinesa transita assim de um crescimento de mais de 10% ao ano para um crescimento de cerca de 7% ao ano, o que acaba contagiando negativamente outros países com quem tem intensa relação comercial, como Japão e países exportadores de commodities, como o Brasil.
As perspectivas de recuperação econômica, portanto, não são animadoras. A zona do euro carece de um instrumento que permita os governos cumprirem suas obrigações financeiras sem adotar uma política fiscal que gere recessão, uma vez que o BCE não pode atuar como emprestador de última instância.
Os EUA, por seu turno, às voltas com eleições presidenciais neste ano, poderão se defrontar com um problema de precipício fiscal ("fiscal cliff") em 2013, quando sofrerá o efeito do fim dos cortes de impostos estabelecidos no governo Bush (cerca de US$ 700 bilhões) e a necessidade de um corte obrigatório nos gastos públicos no valor de US$ 1,5 trilhão a partir de janeiro de 2013, se outros cortes não tiverem sido efetuados antes. Um ajuste fiscal desta magnitude resultaria em uma nova recessão americana. Por fim, a economia chinesa, sofrendo com o baixo dinamismo das demais economias, e sem capacidade de dar uma resposta mais robusta em termos de políticas anticíclicas, como um 2009, quando o governo adotou medidas de incentivo da magnitude de US$ 630 bilhões, também deverá manter um crescimento mais baixo, cerca de 7% ao ano, que é a meta do plano quinquenal até 2015.
Os impactos da crise mundial sobre a economia brasileira já se fazem sentir por vários canais: redução da demanda e preços das commodities, com efeitos sobre as exportações; diminuição nos fluxos de capitais externos face a maior aversão ao risco dos investidores; e, mais importante, uma deterioração nas expectativas empresariais face a percepção de incerteza quanto ao futuro da economia mundial e da incapacidade de dar respostas adequadas para a crise atual.
Claro que num eventual contágio os efeitos serão ainda maiores. O país está preparado para enfrentar uma deterioração no quadro internacional? Em boa medida sim: tem bom volume de reservas cambiais, a situação fiscal está boa, têm bancos públicos fortes com capacidade de uma ação contracíclica no mercado de crédito, um banco central hoje mais pragmático e menos dogmático, e algumas variáveis macroeconômicas básicas estão melhores posicionadas, como a taxa de juros e a taxa de câmbio.
A capacidade de ter um crescimento mais robusto e sustentável a longo prazo é outra história, pois depende crucialmente da habilidade do governo de articular efetivamente um conjunto de investimentos públicos e privados nos próximos anos.
O futuro da economia mundial oscila entre um quadro de pessimismo moderado e de pessimismo acirrado (a partir de uma crise do euro em grandes proporções). Minha aposta é um cenário de "pessimismo moderado": a economia americana continua patinando em um crescimento baixo e elevado desemprego, sem uma recuperação mais robusta; a zona do euro vai ficar empurrando com a barriga a crise do euro, implementando soluções ad hoc conforme os problemas forem aparecendo.
Um cenário possível, neste contexto, é que a Grécia não aguente o ajuste recessivo e saia da zona do euro, o que vai implicar o contágio de outros países, como Espanha, Portugal e Itália. Neste caso os países do euro teriam que ampliar o fundo de socorro para compras de dívidas soberanas ou permitir que o BCE o faça. O resultado seria provavelmente não a implosão da zona do euro, mas a sua manutenção sem a Grécia. Os impactos seriam fortes sobre a economia mundial, mas não necessariamente devastadores como foi a quebra de Lehman Brothers, até porque de certa forma não seria um evento inesperado.
Karl Polanyi mostrou em seu livro "A grande transformação" que, na evolução histórica do capitalismo, o liberalismo econômico se tornou um credo, com a universalização dos mercados autorregulados, através da defesa permanente do laissez-faire e do livre comércio. Começou como uma tentativa de eliminar algumas leis e regulamentações da produção até atingir a economia inteira. Houve uma forte participação do Estado para atingir um nível de regulação que tornasse o "laissez-faire" um principio ativo da economia. O paradoxo, para ele, é que "enquanto que a economia laissez-faire foi o produto da ação deliberada do Estado, as restrições subsequentes ao laissez-faire se iniciaram de forma espontânea. O laissez-faire foi planejado; o planejamento não".
A sociedade, seguindo o princípio da autoproteção social, teria uma reação defensiva que se articula historicamente "não em torno de interesses de classes particulares, mas em torno da defesa das substâncias sociais ameaçadas pelos mercados".
A crise econômica atual é uma crise de um mundo excessivamente liberalizado, em particular no que se refere às finanças globais. A sociedade está ameaçada pelas forças avassaladoras do livre mercado e pela inação e miopia dos governantes e elites políticas. A reconstrução de uma nova era de prosperidade só será possível repensando-se profundamente a relação Estado e economia, a geopolítica mundial, o grau de autonomia das politicas públicas frente a globalização, o formato da regulação do sistema financeiro, e o sistema de proteção social. O mercado é e sempre será, como destacou Polanyi, uma construção política e social. Neste particular, é de se esperar que alguma mudança maior, se houver, só será possível por conta da pressão dos países emergentes. O futuro da economia mundial e a geopolítica global estão em aberto. Em particular, o "double dip" será tanto maior (ou menor) e profundo quanto menor (ou maior) for a capacidade dos governos nacionais darem respostas adequadas para a superação da crise atual, o que como sugerido neste artigo parece não ser o caso, pelo menos a médio prazo.
Notas:
1 Ver Farhi, M. (2012), "A crise e os dilemas da política econômica". V Encontro Internacional da AKB, www.akb.org.br.
2 Ver Kregel, J. "Seis lições extraídas da crise europeia" e Freitas, M.C.P., "Do Tratado de Maastricht à crise financeira", no livro Sistema Financeiro e Política Econômica em uma Era de Instabilidade, Elsevier/AKB, 2012.


Este é o quinto de uma série de artigos sobre a crise econômica atual e seus prováveis desdobramentos no mercado internacional e no Brasil, feitos por renomados economistas a pedido do Valor.




##############################################

Este é o primeiro de uma série de artigos feitos por renomados economistas brasileiros e estrangeiros convidados pelo Valor para discutir a crise financeira internacional e avaliar seus possíveis desdobramentos (William Handorf, José Luiz Oreiro, Gustavo Franco, Michael Pettis, Márcio Garcia, Carlos da Silva Costa,). Especial sobre Brasil.


What An Economist Learned From Reading 21 Books About The Crisis


Jackson Hole, Wyoming, 2012!
Por Antonio Delfim Netto [[NAKANO, depois]]
A política monetária americana produziu efeitos pífios, além de comprometer o equilíbrio fiscal. É hora de mudar
VALOR ECONÔMICO, 11-09-2012


MARCAS DE UMA CRISE GLOBAL
por Sergio Lamucci | De Washington
Há cinco anos, a falência do Lehman Brothers empurrou a economia mundial para uma tormenta que pode estar longe de terminar
VALOR ECONÔMICO, Caderno EU & FIM DE SEMANA, 06-09-2013
http://www.twitlonger.com/show/n_1rmab6t


É ESSE O CAMINHO? - VALOR (SUPLEMENTO)
Por Claudia Safatle | De Brasíliac
Entre a "guerra cambial" e "tsunami monetário", o governo tenta controlar o fluxo de capitais e defender o país de uma suposta desindustrialização
Valor Econômico - 02/05/2012 - SUPLEMENTO
https://docs.google.com/document/d/1R7btcUGH5B6hbleD5Z-Amp6j89LOtIOh01ilC4kMCB4/edit

No comments: